Em janeiro de 1971, São Paulo inaugurou o elevado de 3,4 km que sufoca a av. General Olímpio da Silveira, a praça Marechal Deodoro, parte da av. São João e a rua Amaral Gurgel no centro de São Paulo, o famigerado Minhocão. Foi um movimento importante na deterioração da região central. No início, o tráfego nunca era interrompido, prejudicando enormemente a qualidade de vida nos edifícios do entorno. Em 1976, o tráfego passou a ser interrompido entre meia-noite e 5 horas da manhã; em 1989, o horário de interrupção noturna foi ampliado – das 21:30 às 6 horas da manhã – e passou a ficar fechado aos domingos. Mas o estrago estava feito. A região perdeu valor, os edifícios passaram a estar mal mantidos, pouco importando sua qualidade, alguns deles desenhados por grandes arquitetos caso, por exemplo, do edifício Araraúnas.
O Araraúnas, de 1953 (av. São João 1833), projetado pelo arquiteto Adolph Franz Heep (edifício Itália, Hotel Jaraguá) recebeu o Grande Prêmio da 3ª Bienal Hispano-Americana de Arte, Barcelona/ 1955. Situado numa esquina, tem a lateral paralela à Alameda Glete e a elevação principal traça uma curva suave, evitando o ângulo agudo daquela esquina. Todas as unidades têm terraço voltado para o que era então uma aprazível avenida São João.
Para quem desce a rua Martim Francisco em direção à Alameda Glete, os fundos do Araraúnas mostram o cuidado do desenho, mesmo numa elevação sem qualquer garantia de que fosse permanecer visível.
Os edifícios Porchat, do arquiteto Rino Levi, são quatro edifícios independentes, concebidos para quatro irmãos. Embora sejam iguais, o arquiteto soube tirar partido da inclinação dos lotes para destacar cada um dos blocos. O conjunto foi tombado pelo Conpresp em março de 2018. Um reconhecimento à importância da obra do arquiteto na sua adequação dos “princípios da Arquitetura Moderna […] à realidade paulistana daqueles anos” <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/re3218tombamentoobrasrinolevirevisaopdf_1551381264.pdf>.
O artigo 375 do Plano Diretor Estratégico (lei número 16050), previu a completa desativação do Minhocão como via de tráfego. Desde 2015, os horários de tráfego de veículos vêm sendo diminuídos, hoje o período permitido para tráfego de veículos é de segunda a sexta, das 7h00 às 20h00. Em 2018, a lei 16833 criou o Parque Municipal Minhocão. Desde então, o elevado tem vida dupla: Elevado João Goulart durante o horário comercial nos dias de semana e Parque Minhocão à noite, domingos e feriados. No entanto, sob o Elevado, os problemas não mudam: a enorme poluição tanto do ar quanto sonora, a horrenda estrutura, a triste cena dos desabrigados que sobrevivem em meio à sujeira no canteiro central, a insalubre proximidade entre o elevado e os edifícios. Hoje o parque Minhocão é um espaço que se vale do relativo controle de acesso, permitindo piqueniques e confraternizações e certa independência para as crianças livre de assédios e abordagens. Além disso, para os pedestres, acostumados às perigosas armadilhas nos pisos das calçadas, usufruir do piso destinado aos automóveis não tem preço. De qualquer forma, a solução do Parque Minhocão segue controversa.
De alguns anos para cá, no entanto, são visíveis os investimentos privados nos imóveis do entorno. Situação quase inexplicável, já que a situação urbana sob o Minhocão segue muito ruim. Para além da parcial desativação do tráfego motorizado no elevado e da expectativa de sua proibição definitiva, os investimentos parecem apontar para uma mudança de mentalidade em relação à cidade e à revalorização da região central como local de moradia. Na recuperação do conjunto edificado, há o caso, por exemplo, dos edifícios Marajó e Ana Maria. Situados nos números 615 e 589 da rua Conselheiro Brotero, esquina com avenida General Olímpio da Silveira, foram reformados e atualizados para o modo de vida contemporâneo (arquitetura: Readymake, 2019).
Hoje, em 3 esquinas da curta rua Amaral Gurgel há dois edifícios em construção e um em lançamento. Um dos dois já em construção é um empreendimento BemViver Centro, do empreendedor André Czitrom, que se enquadra no programa minha casa minha vida de financiamento federal. Situado numa esquina da Amaral Gurgel com Marquês de Itu, o BemViver Marquês de Itu tem projeto de Isay Weinfeld e 125 unidades habitacionais.
O outro edifício em construção na rua Amaral Gurgel, esquina com a rua Major Sertório (IS Consolação, rua Major Sertório, 423) é um “coliving”: unidades pequenas, com áreas comuns compartilháveis.
A dicotomia colocada pelo “parque minhocão” dá o que pensar. O baixo do viaduto é retrato escarrado do abandono do centro pelo poder público, enquanto o espaço qualificado em cima, relativamente protegido e sem lixo, dá o gostinho do centro que poderia ser, ou virá a ser?
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