O triângulo histórico de São Paulo segue em reforma desde novembro de 2022. A prefeitura está substituindo o antigo calçadão, implantado na década de 1970 e que, desde então, sofreu inúmeros remendos com alteração de materiais e padrões, além de desníveis e irregularidades de superfície. Junto com a renovação do calçamento, foram previstas valas técnicas e infraestrutura de drenagem, um novo mobiliário urbano, nova iluminação e iluminação cênica dos edifícios históricos. Infelizmente, embora ainda muito incompleto, o novo calçamento já apresenta algum esboroamento nas bordas.

Imagem ilustrativa. Fonte: Secretaria de Urbanismo e Licenciamento e SP Urbanismo

A ampla área de calçadão seguirá inalterada. No entanto, o grande fluxo de pessoas que havia ali já não existe. A região parece estar num interregno. Distrito turístico? Economia criativa? O antigo Othon Palace Hotel foi desapropriado pela Prefeitura de São Paulo, reformado e, desde 2018, abriga a Secretaria Municipal da Fazenda. Se não há hotéis, há espaços culturais: Farol Santander, CCBB, Caixa Cultural, Museu das Favelas, Museu Padre Anchieta, Solar da Marquesa de Santos. No setor entretenimento, o grupo Tokyo venceu a licitação do Edifício Martinelli: concessão de quatro andares (incluindo a cobertura) onde haverá um museu, café, área de eventos, bar, cinema, restaurante. O espaço está em reforma e deve ser aberto em 2026. A Casa de Francisca, com shows de música, bar e restaurante atrai público – mas, nos shows noturnos, lança mão de segurança privada para acompanhar os fregueses até o Uber, na rua Benjamin Constant. O comércio popular na rua Direita está com várias lojas fechadas, sobrevive na rua São Bento, salpicado com casas de crédito e espaços à venda ou para alugar. Em toda a área, a subocupação dos antiquados edifícios comerciais é evidente.

Em vermelho, as vias com trânsito de veículos que delimitam a área de calçadão. O círculo indica a localização do Largo da Misericórdia

O epicentro de uma das ideias possíveis de transformação do triângulo histórico parece estar em um espaço que soa meio misterioso, trata-se do Largo da Misericórdia, localizado muito próximo à Casa de Francisca. O nome deve-se à igreja que justificava o largo, mas a igreja da Misericórdia não está mais lá há quase 140 anos. Nem tão pouco o chafariz, de autoria de Tebas, mestre de obra negro, alforriado.

Igreja e chafariz no traço de José Wash Rodrigues (1891-1957), provavelmente baseado em fotografia de Militão Augusto de Azevedo
Planta da cidade de São Paulo levantada pela Cia Cantareira de Esgotos em 1881. Data em que ainda existiam no Largo tanto a igreja quanto o chafariz, marcados em vermelho

A igreja, dava a lateral para a rua Direita e a frente para o Largo da Misericórdia. Local importante na cidade no século XIX, foi-se sem deixar rastro, exceto pelo largo que ainda existe junto à rua Direita e pela manutenção do nome do logradouro.

Igreja e chafariz da Misericórdia. Foto de Militão Augusto de Azevedo 1862
Mapa atual (GeoSampa). Em vermelho, o edifício Tácito Toledo Lara, situado no Largo da Misericórdia n. 20. Em laranja, a Casa de Francisca

Nesse histórico Largo da Misericórdia, foi construído, já na década de 1970, o edifício Tácito Toledo Lara, projeto Severo & Villares. Esse edifício moderno está em um terreno que, originalmente, fora ocupado por sobrados coloniais, que se percebem à direita na fotografia do Militão de 1862. Posteriormente, ocupado por prédios ecléticos: no cartão postal, em primeiro plano à direita. 

Rua Direita sentido Praça do Patriarca. O Largo da Misericórdia abre-se à direita, no plano médio da foto

Essas antigas construções que ocuparam previamente o terreno, em que pese as diferenças de estilo e gabarito, mantiveram uma ocupação de lote tradicional, amalgamadas às construções vizinhas. No entanto, o edifício Tácito Toledo Lara ostenta uma implantação moderna em pleno centro histórico de São Paulo. Sobre um embasamento de lojas, sobe uma torre comercial de 9 andares com estrutura periférica de concreto armado, visualmente afastada das construções vizinhas e recuada em relação aos alinhamentos. Destacada e em conflito com a lógica de implantação do entorno.

Edifício Tácito Toledo Lara. Foto Floriano Marcondes Machado março, 2024
Mesma visada da foto de Militão de 1862. À esquerda o edifício Triângulo (Oscar Niemeyer), no centro o edifício Wadih Kyrillos (no lugar da antiga igreja) e, à direita, o edifício Tácito Toledo Lara. Foto: divulgação Somauma

O edifício Tácito Toledo de Lara foi adquirido pela Somauma e, em maio de 2025, a Prefeitura de São Paulo aprovou o retrofit do imóvel dentro do Programa Requalifica Centro (Lei 17.577/21). O retrofit prevê a transformação do antigo edifíco comercial em um edifício residencial com 43 apartamentos, sendo uma unidade reservada para Habitação de Interesse Social (HIS-2), em programa de locação social. Enquanto a obra não começa, o edifício tem abrigado ocupações artísticas, que levam as pessoas a percorrem seus andares, se apropriarem de seus espaços, olharem a cidade por suas janelas. A maneira como ocorrem essas ocupações artísticas, a ligação que propõem com o local de inserção do imóvel indicam uma aposta na economia criativa como fator de regeneração e renovação urbanas. Essa transformação do imóvel, que passará a se chamar edifício Tebas, além da mudança de uso, parece apostar numa considerável mudança urbana do centro histórico.

Vista do centro histórico de São Paulo a partir do Edifício Tebas. Foto: Floriano Marcondes Machado, março, 2024
Escadaria do Edifício Tebas. Foto: Floriano Marcondes Machado, março de 2024

O antigo edifício Tácito Toledo Lara, talvez tenha sido o último empreendimento comercial na colina histórica de São Paulo antes da derrocada que, por muitos anos, acabou com qualquer investimento imobiliário na área. Na época, seus empreendedores acharam por bem demolir dois imóveis ecléticos, um com cinco, outro com quatro pavimentos e construir no local um bloco novo e moderno, justo num momento em que a explosão do transporte individual estava condenando o centro histórico de São Paulo ao ostracismo, num movimento tão forte que eclipsou até mesmo a eventual salvação que poderia vir com a implantação do metrô (a linha norte-sul foi inaugurada em 1974). Não deixa de ser irônico que, na época, o moderno edifício Tácito Toledo de Lara, em que pese sua renovação estilística, apontava para uma continuidade do Centro histórico de São Paulo nas mesmas bases, enquanto o “novo” edifício Tebas, mesmo com a manutenção do arcabouço construído, aponta para uma recriação do significado da colina histórica de São Paulo.

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